Autor: Luís Manoel Borges do Vale, Procurador do Estado de Alagoas

A crise institucional de legalidade, no âmbito das secretarias de saúde, e a sistemática do pagamento por indenização.

Não é recente a falta de organização e planejamento, nas contratações públicas, que se abate sobre as Secretarias de Saúde de todo o país, mesmo que esse órgão seja diuturnamente demandado, em face do dever estatal de efetivação de um direito fundamental de relevante matiz, qual seja a saúde, consoante ressoa a dicção do art. 196 da Constituição Federal de 1988.

Certo é que, considerando a necessidade cada vez mais crescente da população, deveria o Poder Público traçar uma organização estratégica, a fim de viabilizar, principalmente, ações básicas, tais como a distribuição de medicamentos e manutenção dos equipamentos hospitalares.

Na verdade, o que se divisa, no cotidiano, é uma desarticulação administrativa, que tem ocasionado, cada vez mais, enxurradas de pleitos judiciais, além de contratações que tem subvertido a lógica legal do dever constitucional de licitar.

Mais especificamente no que pertine ao regime de contratações públicas, um evento tem chamado a atenção dos órgãos de assessoramento jurídico e dos órgãos de controle, qual seja o aumento demasiado do número de pagamentos por indenização, nas Secretarias de Saúde dos Estados e Municípios.

Ressalte-se, por oportuno, que o art. 59, da Lei 8.666/93[1], ao invés de ter incidência ocasional, em hipóteses de nulidades eventuais de contratos administrativos, acabou por se transmudar em válvula de escape para contratações direcionadas e subversivas ao procedimento administrativo licitatório.

O que tem ocorrido é que, sob o fundamento da emergência, os gestores públicos tem adquirido medicamentos e realizado serviços, por ducto de contratos verbais, que são plenamente nulos, diante do que vaticina o art. 60 da Lei Geral de Licitações.

Assim, depois de efetivada a contratação, são instruídos processos administrativos, os quais são remetidos à Procuradoria, com o fito de que seja avaliada a possibilidade de pagamento por indenização, para que não ocorra enriquecimento sem causa do Poder Público.

O posicionamento da grande maioria das Procuradorias de Estado é o de, em verificando a nulidade do pacto firmado verbalmente, anuir com o pagamento indenizatório, desde que esteja afastada a má-fé do particular. Outrossim, nesses casos,determina-se a instauração de processo administrativo, que se dirige à apuração da responsabilidade do servidor que contratou ilegalmente.

A despeito da orientação supra aludida, oriunda das Procuradorias, essa prática espúria, como se disse, vem se avolumando e permitindo que algumas sociedades empresárias se beneficiem com fornecimentos constantes desse jaez.

Diante de tal panorama, deve-se adotar uma postura mais rígida, a fim de coibir ações subversivas ao interesse público, mormente no que se remete à proteção aos princípios da isonomia, impessoalidade e moralidade administrativa.

Saliente-se, neste ponto, que não só anda mal o gestor que contrata indevidamente, mas também o particular que, tendo ciência da obrigatoriedade da licitação, anui em fornecer ao Estado em condições violadoras da legalidade.

Afinando-se neste diapasão, é que o Tribunal de Contas do Distrito Federal e Territórios, em Acórdão tombado sob o número 437/2011, vem determinando que o pagamento a ser vertido ao particular, nas hipóteses de contratos nulos, deve ser feito apenas pelo valor do custo do bem ou serviço, deduzidos quaisquer lucros:

“ (…) b) o fornecimento de serviços, obras e bens sem cobertura contratual, fora das hipóteses ressalvadas em lei, dará ao fornecedor o direito a ser indenizado somente pelo que aproveitou à Administração, retirando-se quaisquer lucros ou ressarcimentos pelos demais gastos, sem prejuízo de responsabilização do gestor que der causa à despesa em desconformidade com a lei; c) não poderá alegar boa-fé o particular que fornece bens, obras ou serviços sem respeitar disposição legal vigente, em especial o art. 60, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93;”

O posicionamento supra é encampado pela Procuradoria Geral do Distrito Federal e Territórios, na forma do Parecer 995/2011/PROCAD/PGDFT.

Nesse sentir, a tese engendrada pelo TCDFT parece mais se afinar com o ordenamento jurídico, na medida em que consolida determinação constante do art. 3º[2], da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei 4.657/42, no sentido de que não é dado ao particular alegar o desconhecimento das normas jurídicas, para se escusar ao seu cumprimento.

Portanto, aquele que fornece ao Poder Público, sem as formalidades do processo licitatório, não está imbuído de boa-fé, devendo ser ressarcido apenas no limite do custo efetivo, resguardadas as demais penalidades legais.

Noutro giro, reconhecendo a crise de legalidade que paira sobre as Secretarias de Saúde, o Tribunal de Contas da União, no Acórdão 864/2013, apontou a necessidade de barrar pagamentos por indenização, que derivem da falta de um planejamento estrutural do Poder Público:

“13. Para que se tenha ideia da magnitude da desordem, trago trechos do referido parecer, transcritos no relatório constante do acórdão recorrido:
“6. De outro lado, releva notar que as contratações verbais ora analisadas vêm ocorrendo por um longo período de tempo, conforme demonstram outros processos em trâmite nesta Procuradoria. Destarte, as aquisições e prestações de serviços sem prévio procedimento licitatório e sem contrato (ou instrumento legítimo que o substitua) vêm sendo efetuadas diuturnamente, o que é suficiente para realização de procedimento licitatório em qualquer das modalidades, razão pela qual insubsistentes os argumentos de urgência e ausência de tempo hábil para licitação.

Várias empresas privadas vêm executando serviços e fornecendo materiais hospitalares à Secretaria da Saúde sem o mínimo de procedimento, denotando-se total desrespeito às legislações sobre licitação e finanças públicas. (…)
Esta forma de atuação do Administrador Público da saúde demonstra falta de planejamento em suas atividades, onde o conceito de orçamento programa da Constituição Republicana é totalmente ignorado, agindo a Administração Pública de forma pontuada, com atenção exclusiva a emergência, causada por sua própria inércia em não contratar, com as formalidades legais, no comenos escorreito.”

Diante de tais considerações, faz-se imprescindível alertar aos gestores públicos que o procedimento de pagamento por indenização é excepcional e não deve trasmudar a exigência da Carta Magna de realização dos regulares certames licitatórios.

Posturas como a do TCDFT, limitando o valor da indenização ao custo efetivo do produto ou serviço ilegalmente contratado, tem-se erigido como uma via efetiva, hábil a coibir a prática reiterada de pactos espúrios.

Doutro lado, a inobservância do devido processo legal licitatório configura crime previsto no bojo do art. 89 da Lei 8.666/93.

Enfeixando tais considerações, é mister louvar o posicionamento do Tribunal de Contas da União que, como ressaltado no Acórdão supra, vem rechaçando essa crise de legalidade, que ora se abate sobre as Secretarias de Saúde.

É preciso que os gestores tenham ciência da necessidade de planejamento das contratações públicas, para afastar emergências criadas, muitas vezes com o objetivo de direcionar aquisições a certos fornecedores.

 

[1] Art. 59.  A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.

Parágrafo único.  A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.

[2] Art. 3o  Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.

 

 

*Artigo originalmente publicado na Revista da APE – Edição 04, 2014. Página 15.