Autor: Paulo Lôbo, Doutor em Direito, foi Procurador Geral do Estado de Alagoas e membro do CNJ
De onde provém o poder das pessoas de criarem obrigações para si mesmas? O Estado Moderno monopolizou a criação das normas jurídicas. Contudo, admitiu espaços ora mais amplos, ora mais estreitos, onde os indivíduos podem autorregrar seus interesses. Nem sempre foi assim. O direito romano antigo desconhecia qualquer traço de poder negocial às pessoas, porque concebia o direito como um sistema rígido de actiones, sem as quais qualquer tutela jurídica de interesses era impensável. Ainda quando as transações atingiram elevado nível de complexidade, exigindo-se a superação das formas pétreas, manteve-se a essência do sistema, criando-se um tipo de actio dúctil à imprevisibilidade dos tipos de negócios (por esta razão, inominados, não enquadráveis aos tipos já fixados pelo direito) que a expansão do império romano foi engendrando: a actio praescriptis verbis. Entre os medievos, as relações jurídicas, inclusive as negociais, pautavam-se no status dos homens, nos localismos jurídicos e na inserção em ciclos sociais imodificáveis.
No Estado liberal (seu auge foi durante o século XIX), a autonomia justificava-se por si mesma. Dizer que a vontade era autônoma ou livre era quase um truísmo, dada a força da ideologia dominante, que a fundava nas idéias inatas de liberdades absolutas de propriedade e dos negócios. O livre jogo das forças de mercado conduzia ao equilíbrio de interesses e dos poderes econômicos distintos. Essa origem, de forte matiz ideológico e resultante de contingências históricas, levou Pontes de Miranda a construir categoria juridicamente mais estável, e Hans Kelsen a propugnar por sua natureza exclusivamente política, sem interesse para o direito, voltado este tão somente para a norma criada pelo negócio jurídico.
Ao contrário de Kelsen, Pontes de Miranda investiga o autorregramento da vontade no âmbito exclusivamente jurídico, a partir do estudo dos limites do poder negocial. O tema é cuidado, especialmente, nos volumes III e XXXVIII do Tratado de Direito Privado, nos quais a característica ressaltada (a limitação do espaço jurídico do poder de escolha) é dita claramente: “É o espaço deixado às vontades, sem se repelirem do jurídico tais vontades” (vol. III); “Não há autonomia absoluta ou ilimitada da vontade; a vontade tem sempre limites, e a alusão à autonomia é alusão ao que se pode querer dentro desses limites” (vol. XXXVIII).
Pontes de Miranda afasta os voluntarismos e os subjetivismos (tema de uma de suas obras, publicada em alemão, Subjektivismus und Voluntarismus im Recht, 1922), optando pela manifestação de vontade como dado objetivo, exteriorizado, reconhecível pelo direito. A manifestação de vontade é o elemento nuclear do suporte fático do negócio jurídico, que o identifica e individualiza, sendo gênero do qual são espécies a manifestação tácita ou silente e a manifestação expressa, ou ainda, a declaração da vontade e a manifestação simples (manifestação adeclarativa, v.g. a aceitação da herança, a derrelicção e a revogação do testamento pela destruição). No conflito entre a vontade, em si, e a exteriorizada, esta deve prevalecer.
A doutrina tradicional pôs como fontes de limitação apenas os bons costumes e a ordem pública, repercutindo o ideário liberal burguês da primazia do individualismo, negando-se o poder de intervenção do Estado legislador, administrativo ou judicial, para realização da justiça social nas atividades econômicas.
Para Pontes de Miranda, cada sistema jurídico estabelece as normas cogentes mais ou menos expandidas. Tais normas delimitam, positiva ou negativamente, o espaço de autorregramento, que foram mínimas no Estado liberal e amplas no Estado social contemporâneo. As normas dispositivas não são delimitadoras porque ficam disponíveis à integração dos negócios jurídicos quando não se dispuser em contrário pelas partes; deixam incólume o autorregramento da vontade.
O direito, ao estabelecer as normas de delimitação, atinge parcial ou totalmente os três tipos de poder ou de liberdades de escolhas postos à disposição dos indivíduos, no âmbito do autorregramento da vontade: a) o poder de escolher o tipo de negócio jurídico ou criar um novo; b) o poder de escolher o figurante a que se vincule; o poder de determinar o conteúdo do negócio. Pontes de Miranda (especialmente no vol XXXVIII) engloba os dois primeiros tipos em um só: liberdade de conclusão. Especifica, no entanto, as três primeiras espécies básicas de limitação a essa liberdade, ou seja: a) as empresas de serviços ao público não podem rechaçar as ofertas a contratar e são obrigadas a ofertas ao público; b) se a recusa a contratar importar danos a quem se apresenta e for injustificadamente feita; c) em todas as hipóteses de economia dirigida ou economia controlada.
Anote-se que em cada sistema jurídico a Constituição determina grandes limites ou mesmo a conformação da atividade econômica e, consequentemente, do autorregramento da vontade. A Constituição brasileira, no art. 170, estabelece que é livre a atividade econômica observados certos princípios, nomeadamente o da justiça social. A ordem econômica é, assim, o ponto de partida da definição do espaço de autorregramento.
*Artigo publicado originalmente na Revista da APE – Edição 04, 2014. Página 06.